Sentada à mesa perto da lousa eu organizava algumas atividades quando um dos meus meninos veio até mim e, com a voz embargada e os olhinhos envoltos em lágrimas, disse: “Adri, estou com muitas saudades da minha avó…”.
Eu o abracei e procurei acolher todo aquele sentimento. Com o meu casaco úmido diante daquele pranto, eu, cuidadosamente, o afastei e disse: “Como ela se chamava?”
O menino respondeu e juntos começamos a pensar naquela presença tão forte dentro daquele coraçãozinho sincero e cheio de amor.
Saímos para dar uma volta pela escola, procuramos uma flor para ofertar a vovó. O menino olhou para o céu que apesar de ainda estar azul, já abrigava os últimos raios de sol que buscavam o lugar do seu poente no horizonte. Encontramos a lua. Ele, surpreso, comentou: “Olha Adri, a lua já está lá! E também vejo uma estrela. Será que é a vovó”?
Naquele instante, não pensei em doutrinas, crenças, inclinações religiosas, em nada, além da pura e singela narrativa poética da infância.
A infância que crê, a infância que pode se maravilhar, assim como pensava o filósofo francês Gaston Bachelard em sua vasta obra, que nos conta o quanto a poesia, o sonho e o imaginário podem nos ajudar a lidar, de maneira mais saudável e bela, com situações tão difíceis como o luto.De mãos dadas, deixamos aquela cena – ele com a flor em suas mãos, eu com meu coração carregado de gratidão – ser um momento só nosso.
Voltamos sorrindo e ele planejava fazer um desenho para a querida vovó, pendurar em seu quarto e a flor ficaria em um vaso pertinho do desenho. Alguns dias depois, outra estudante querida me procurava chorando, dizendo que estava pensando em sua cachorrinha que havia morrido. Paramos, sentamos na calçadinha do pátio… Ela se deixou abraçar e chorou no meu peito. E novamente perguntei: “Como sua cachorrinha se chamava”? Ao contar seu nome, nosso diálogo continuou e ela começou a se lembrar das peraltices, do que ela gostava de comer, dos chinelos que estragou.
Eu perguntei: “Você a amou muito? Cuidou dela, não é mesmo? Então ela foi a cachorrinha mais feliz do mundo”. Uma coisa que aprendi convivendo com crianças a minha vida toda, além de qualquer teoria, é que o choro precisa ser acolhido, o choro liberta, fluidifica a alma, revigora os sentidos, abre os portais do imaginário.
Outra coisa, é que é importante haver tempo e escuta para essa dor…
Espaço para abraços, para as lembranças e por fim, a mais preciosa aprendizagem, é preciso haver um lugar para as lindas narrativas poéticas que as crianças podem produzir.
Existe o céu dos cachorros? Vovó virou estrelinha?
E vou além do luto da perda de alguém para outros lutos, aqueles que representam rupturas na infância, como a entrega da chupeta, do paninho, dormir em seu próprio quarto, ir para a escola, o luto da separação, da perda de um amiguinho que mudou de escola.
“O coelho da Páscoa veio buscar minha chupeta”.
“Eu entreguei meu bercinho para o Papai Noel”.
“Eu não vou ver mais os meus amigos”? – dizia soluçando um menino que iria mudar-se de país.
Há que se ter um tratamento para essa pergunta, uma possibilidade de que aquelas presenças não irão desaparecer, poderão se tornar outras, outros afetos. Não se trata de crendices, mas, aprendemos com as histórias e mitos dos nossos ancestrais, o quanto é importante preservar o imaginário, a poesia para que a vida não nos engula e nos tornemos adultos descrentes, não em uma força poderosa externa, mas em uma força pulsante dentro da gente, capaz de transformar em beleza a existência, as relações.
Por exemplo, em várias obras protagonizadas principalmente pela literatura indígena, encontramos importantes narrativas sobre a perda que se transforma, ganha asas, ganha beleza. Dessa forma, ressignificamos nossas dores, temores, mas, claro,sempre com lucidez, equilíbrio do interlocutor que acolhe e sabe que tem a responsabilidade de exercer a função de escuta, acolhimento, amparo, acalento,ombro para o pranto.
Nos primeiros meses de vida, o bebê necessita ver para perceber a presença, quando o ente querido sai do seu campo de visão, ele passa a não existir mais. Porém, com o tempo, a criança percebe a permanência das pessoas e, em seguida, no desenvolvimento da infância, reconstruir essa percepção e criar um lugar eterno dentro de si para aqueles que se vão, é algo que precisa ser cuidado, tratado,valorizado.
Faz parte dessa construção simbólica que necessita habitar dentro de nós.
Há que se ver beleza para sobreviver, pois é a beleza quem vai salvar o mundo, assim como afirma Dostoievski, a beleza além daquela rasa e volátil contida na rapidez das redes sociais, como diz Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano. Estamos falando da profundidade, da beleza que se persegue de dentro para fora, em um exercício de conexão com nós mesmos e nossos valores mais intrínsecos.
Então, vamos dar espaço a esse imenso vazio e construir um jardim bonito, cultivado por memórias, estrelas no céu, pois será sobre esse chão que iremos caminhar a vida toda. Deixo indicações de leituras escolhidas com carinho para ampliar essa reflexão:
– A poética do devaneio – de Gaston Bachelard
– A poética da infância – conversas com quem educa as crianças – Severino Antônio e KátiaTavares
– Pode chorar, coração, mas fique inteiro – Glenn Ringtved
– A origem do beija-flor – Yaguarê Yamá