Inevitavelmente, o mundo conhece Gil através da música, e depois, através da política. Eu era 98% fã dele e completei a carga através do documentário Pierre Fatumbi Verger: Mensageiro Entre Dois Mundos, que mostra a relação do fotógrafo francês Pierre Verger com a Bahia, a África e o candomblé por meio de suas fotografias, livros e anotações. Não poderia ter outra pessoa para narrar esse documentário senão ele, Gilberto Gil, nomeado Artista de Paz pela Unesco e premiadíssimo pelo alto escalão da música como Grammy Awards.
Com mais de 50 álbuns lançados, Gil foi também embaixador da ONUpara agricultura e alimentação, e ministro da Cultura do Brasil, entre 2003 e 2008, durante partes dos dois primeiros mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas, uma curiosidade é que Gil já havia sido vereador em Salvador, entre 1989 e 1993.
Pai de oito filhos, possui ascendência beninense, angolana e outras.
Foi preso em 1968 devido à Ditadura Militar e, em 1970 foi obrigado a sair do país; mudou-se para Londres e retornou em 1972. Formado em administração de empresas, conheceu Caetano Veloso na faculdade. Gil foi fundador da Tropicália, um manifesto cultural contra a ditadura militar considerado o movimento musical mais influente depois da bossa nova. Gosto de dizer que o cantor é
praticamente um patrimônio cultural do nosso país, afinal, se eu fosse falar da sua
contribuição cultural, artística e histórica para nós, certamente não caberia nas próximas páginas. Que honra ter você por aqui.
Recentemente você anunciou sua última turnê intitulada “Tempo”, que terá início no próximo ano. Em que momento você tomou essa difícil decisão?
Foram vários os elementos que ponderei para chegar na decisão da realização de uma última turnê. Houve reflexão sobre este mercado e também sobre a exigência física necessária para esses grandes shows. Quero continuar fazendo música em outro ritmo, mas, antes, teremos essa celebração bonita junto do público e da família. Transformai as velhas formas do viver.
Dado o seu compromisso com a preparação meticulosa e a intensidade emocional que você vivencia no palco, como você equilibra essa busca pela perfeição com a aceitação dos imprevistos e das imperfeições que inevitavelmente surgem em cada apresentação?
Sou detalhista, gosto de olhar cada pormenor de forma minuciosa, porque, até hoje, acredito que nunca terminamos de preparar o que precisa ser feito, seja o show, a atuação, a emoção, ou a performance. Tudo isso deve ser preparado até o último momento, até a última corda vibrar, até a última música tocar. E mesmo assim, não termina. Quando você vai para casa, ainda pensa: “Errei aquela nota, esqueci aquela palavra, aquela canção…”. Fica ecoando, ressoando. Estamos sempre falando de música porque há uma canção; amamos o último aplauso. Eu sou assim. Conforme fui ficando mais velho, percebi o quanto ainda sou infantojuvenil, e acho que vou permanecer desse jeito até o fim da vida. Ao mesmo tempo, sou um pouco acanhado, pueril, genuíno, mas, também sou o primeiro a
chegar para passar o som.
Uma pergunta muito simples, mas complexa. Como será a sua relação com o palco nesta última turnê?
Eu não sei. Espero que seja, enfim, dentro do padrão histórico da minha relação com o palco. Sempre foi assim… Como já mencionei, há essa obsessão pela preparação, por garantir que tudo esteja perfeito. Eu gosto de ensaiar. Há muitas lendas a meu respeito no meio musical, e uma delas é essa ideia de que cada ensaio meu é um show. Quando passo o som — o que todos os músicos fazem — faço como se fosse um show, embora alguns músicos não passem o som ou façam ensaios mais leves. É assim que as pessoas se referem a mim, porque eu valorizo o padrão histórico. E esse padrão sempre vem acompanhado de um certo nervosismo antes de entrar no palco, especialmente em estreias, lançamentos, em momentos em que a exigência é maior. Nesses momentos, a atenção do público está voltada para nós com uma curiosidade mais intensa, porque também estamos colocando nossas próprias questões diante deles. Esse padrão histórico tem vários significados: é histórico porque sempre começou bem e terminou relativamente
bem, sempre.
Diante de tudo o que mudou e o que permaneceu ao longo dos anos, como você
enxerga a transição entre a vida no palco e as novas ocupações que surgiram em sua rotina? Como essas novas experiências têm moldado sua percepção de sucesso e realização pessoal?
O que permanece é essa vontade, esse gosto de fazer. Desde o primeiro momento até hoje, houve sempre uma resposta razoavelmente positiva do público, da mãe, da filha, do trabalho. Essas coisas foram importantes até hoje. O que resta é isso. E isso é igual ao que era 50 anos atrás. Sim, muita coisa mudou, mas também permaneceu igual. Sempre volto àquela reflexão filosófica: tudo é e não é ao mesmo tempo. As coisas boas ficaram, as dificuldades e os desafios também permaneceram. Se são boas ou ruins, isso depende da perspectiva. Em relação aos palcos, o que mais vai deixar saudade é o sentimento de estar ali, de viver aquele momento. Eu comecei numa época em que tudo girava em torno do palco, era o meu sol. Isso certamente vai fazer falta. Da bateria, do carinho das meninas, de tudo isso, eu sentirei saudades, sim. Puxa vida, não preciso mais me preocupar com tudo isso, não tenho mais que lidar com o microfone ou com os gritos da plateia como há 50 anos. Agora, tenho outras ocupações. Mas, mesmo assim, a saudade vai ficar, porque a saudade é um sentimento bom.
Considerando o impacto cultural e a inovação que a Tropicália trouxe para a música e a arte no Brasil, você enxerga nas novas gerações de artistas, como Liniker, uma continuidade desse espírito de ruptura e experimentação? De que forma esses artistas estão ressignificando os legados tropicais à luz das questões contemporâneas de identidade, gênero e raça?
Sim, definitivamente vejo elementos da Tropicália nas novas gerações de artistas, e Liniker é um exemplo brilhante disso. Assim como a Tropicália desafiou normas e celebrou a diversidade, ela incorpora essa mesma ousadia em sua arte e em sua própria identidade. A Tropicália foi um movimento que abraçou a experimentação, a fusão de gêneros e a quebra de barreiras. Ela, com sua voz única e sua presença andrógina, representa essa mesma liberdade artística. Ela transita entre o masculino e o feminino, assim como a Tropicália transitava entre diferentes estilos musicais e influências culturais. Além disso, a profunda conexão de Liniker com artistas da minha geração, como Milton Nascimento, demonstra como ela se inspira e dá continuidade ao legado da música popular brasileira, algo que a Tropicália também fez ao incorporar elementos da cultura popular e da música
tradicional em sua obra. Liniker é, sem dúvida, uma artista que representa a diversidade e a liberdade artística da contemporaneidade, assim como a Tropicália representou em sua época. Ela é uma prova de que a música brasileira continua a evoluir e a se reinventar, mantendo viva a chama da criatividade e da ousadia.
Em um país marcado por polarizações e fragmentações, como você vê o papel da arte e da cultura na construção de diálogos e na promoção de uma coesão social? De que maneira a expressão artística pode atuar como uma ferramenta poderosa para criar pontes entre diferentes realidades e narrativas, fomentando uma sociedade mais inclusiva e empática?
A arte e a cultura, ao unirem diversas linguagens em múltiplas formas de expressão como a música, o teatro, a televisão, criam pontes que conectam as pessoas, fortalecendo seus laços e grupos sociais. No entanto, em um contexto onde máquinas, políticas e ideologias tendem a fragmentar a sociedade, a importância da arte e da cultura torna-se ainda mais evidente. A dispersão das pessoas e a consequente perda de suas individualidades em prol de um modo de vida contemporâneo cada vez mais homogêneo fazem com que a possibilidade de se conectar através das linguagens artísticas e comunicacionais seja fundamental. As artes oferecem um espaço para que os indivíduos expressem suas singularidades e exorcizem os males sociais cada vez mais presentes em nosso mundo. A arte, cada vez mais abstrata, encontra na concretude dos encontros entre as pessoas sua forma mais genuína de expressão. A música, a dança, a poesia, a atuação e outras linguagens artísticas proporcionam um espaço para que os indivíduos se conectem e transmitam suas ideias e emoções. A arte, nesse sentido, atua como um catalisador, permitindo que diferentes linguagens se misturem e se complementem, da fala à expressão corporal, passando pela dimensão conceitual. É através da arte que a humanidade encontra um terreno comum para se comunicar e se transformar.
Você esteve envolvido com um outro projeto musical, foi responsável pela criação da música de abertura para a série animada “Pipas” que tem direção de Bruno Bask. Como foi essa experiência?
Para escrever a canção, primeiro, me referi naturalmente ao campo do sentimento, das ideias. Falei das pipas propriamente ditas e da infância de qualquer um de nós. Minha infância foi cheia de pipas. As pipas, não só aqui, mas no mundo inteiro, têm um papel importantíssimo na vida das crianças, no mundo da fantasia infantil, da brincadeira, do entretenimento e nas várias possibilidades de ilustração da vida.