O DEDINHO PARA FORA DA MEIA – Por Adriana Rodrigues Xavier

A sutileza da intimidade saudável com a criança e o perigo do abuso infantil

Andando de mãos dadas com uma das minhas estudantes queridas, ela parou, sentou-se no banco que havia no caminho e decidida, tirou os sapatos dizendo: “Adri, meu pé está coçando, acho que tem alguma pedrinha, dá uma olhada…”Eu me agachei e quando fui ajudar a tirar as meias com a estampa de um personagem da literatura infantil, percebi um pequeno furinho que revelava a ponta do dedinho naquele pé quentinho e que guardava a energia de tantas brincadeiras vividas até aquele momento.

Eu pensei sobre o privilégio que me fazia ter acesso a tamanha intimidade daquela menina.
Vi beleza, simplicidade…Não era desleixo da família, não era falta de cuidado, pelo contrário, era poema, tinha cheirinho de amaciante e era a meia do dia a dia, de ir pra escola.
Como professora há mais de trinta anos lidando com os pequenos, tenho tantos acessos a particularidades, intimidades.“Adri, vem me ajudar no banheiro”? “Meu nariz está sangrando…“Adri, dói quando eu vou ao banheiro, está vermelhinho meu fazedor de xixi.

”Esses dias, um estudante chegou até mim e mostrou uma pele que o incomodava próxima a unha de um dos dedinhos. Eu limpei aquela mãozinha suja de terra, lixei com cuidado e hidratei com um pinguinho de pomada de bumbum de nenê.
Ah, não é nada…é só uma pelinha! Para mim, qualquer coisa que os incomode é algo, as queixas devem ser acolhidas, com o contorno do bom senso e sobretudo do amor.
No ambiente da escola, nosso dia a dia é assim, e para nós toda essa intimidade é natural.

As crianças aceitam, se abrem e então nos damos conta da tamanha fragilidade e vulnerabilidade diante das inúmeras intervenções que precisam perpassar pelo contato como corpo.
Eles são corpo, são movimento, são inteiros e o todo necessita de atenção.
O dentinho que caiu, a parte íntima que machucou quando brincava no trepa-trepa, o joelho ralado, o cabelinho suado que precisa ser penteado e preso. E é claro que essa aproximação do profissional que cuida, deve ser cuidadosa, sutil, permeada por um tom de voz sereno.

Contudo, a voz e o tom de quem se aproxima com outra intenção, também é amistoso, amigável e na imensa maioria das vezes, ela vem de alguém com quem a criança possui vínculo. A voz é baixa, o toque é cuidadoso. Esse filme de terror é silencioso.

Então, como podemos orientar desde sempre nossos pequenos a conseguirem discernir as situações?
Como podemos ensinar a estabelecer os limites na escola, na família, no mundo?
Embarquei nessa reflexão, inclusive inspirada pelo último 18 de maio, em que tivemos o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Esse dia foi escolhido em memória de Araceli Crespo, uma menina de 8 anos que, em 18 de maio de 1973, foi sequestrada, violentada e assassinada em Vitória (ES). Sim, é aterrorizante, e nem vou entrar nos debates acerca da prostituição infantil, ficarei à beira do abismo, com o toque feito por quem está perto e que não é o toque do cuidado, do zelo, mas do abuso, da invasão.

Mas, nós não podemos virar as costas para o mundo, adotar uma postura que desconfia da própria sombra, entrar no campo da neurose, isso não vai ajudar, só vai potencializar um lugar de desespero e insegurança.

Existem combinados que podemos fazer com as crianças e orientações, principalmente para quem já está crescendo… Existe literatura infantil que já toca no assunto de maneira assertiva e pode e deve ser explorada. Contudo, vou além, batendo na tecla daquilo que acredito, sem cartilhas, manuais, desconfianças infundadas. Meu itinerário é o amor e a autocompaixão. Ensinar a amar a natureza é o melhor jeito de preservá-la, então ensinar o amor próprio, o respeito pelo outro e por si mesmo ainda é, para mim, a melhor forma de sensibilizar as crianças diante desse assunto tão difícil de tocar.

Saber reconhecer o amor verdadeiro é como um espelho para a alma, que se nutre dessa dádiva e cresce segundo esse ensinamento. E nós, pais, educadores, adultos amorosos de referência, devemos manter a conexão conosco, com nossos valores a ponto de conseguirmos enxergar algo diferente, que salta aos olhos, um comportamento aqui, uma palavra ali, um suspiro mais a frente.

O diálogo é importante, mas não a inquisição, por isso a observação é fundamental para identificar mudanças nas atitudes, na alimentação, na rotina de uma maneira geral. O ambiente de amor fará vir à tona o que de fato precisa aparecer. Os canais abertos com leveza e amor são poderosos para que sempre haja espaço seguro para a criança falar sobre o que a incomoda.

Eu me despeço afirmando que quero continuar a saber sobre o furinho na meia, o joelho ralado, a afta dentro da boca, a pelinha do dedinho da mão, o xixi que escapou, e tantas sutilezas presentes no corpo autônomo e na alma que conhece sobre a empatia, o cuidado,o respeito, e que é livre para amar e ser amado.

Deixo dicas de literatura para tratar o tema com os pequenos e também a página do Instagram, Childhood Brasil, uma ONG pioneira na prevenção e na luta contra o abuso e à exploração sexual de crianças e adolescente.

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