Fernanda Torres já nasceu predestinada ao sucesso. Filha dos brilhantes Fernando Torres e Fernanda Montenegro, desde muito cedo ela entendeu e acolheu seu propósito de vida, sua arte. Virginiana, nascida no Rio de Janeiro, aos 13 anos ingressou na escola de teatro Tablado e no mesmo ano fez sua estreia no teatro em uma peça montada pela professora Maria Clara Machado, “Um tango Argentino” (1972).
A partir daí trilhou sua carreira na TV, no teatro e no cinema. Fez sua primeira novela na TV Globo, “Baila Comigo”, em 1981, no papel de Fauna Rosa França.
Com o filme “Eu Sei que Vou Te Amar” (1985), de Arnaldo Jabor, recebeu a Palma de Ouro de melhor atriz no Festival de Cannes, com apenas 19 anos.
Nos anos 90 começou a investir mais na comédia. Em 1998 se casou com o diretor de cinema e publicidade Andrucha Waddington. E protagonizou um dos grandes sucessos da sua carreira, entre 2001 e 2003, a série “Os Normais” (entre 2001 e 2003), ao lado de Luiz Fernando Guimarães. O sucesso do programa foi tanto, que ganhou as telas de cinema em dois filmes.
Mas além da carreira de atriz, Fernanda também se destacou como diretora, produtora e escritora. Brilha ainda no papel de mãe, dos meninos Joaquim e Antônio, de 19 e 11 anos.
Ela tem uma vida simples, gosta de atividades ao ar livre e acredita que a melhor maneira de se recarregar é uma boa noite de sono. Recentemente, nas celebrações dos 90 anos da mãe, um ícone das artes em nosso país, Fernanda declarou orgulhosa que o que mais admira na mãe é que ela é uma mulher do presente, mesmo tendo passado por tantos governos, modas, mudanças e evoluções.
Está na minissérie “Filhos da Pátria” – escrita por Bruno Mazzeo, com a sua segunda temporada ambientada agora no início dos anos 1930, da Era Vargas. E apesar de ser um roteiro “de época”, Fernanda afirma que os temas são atuais e refletem a nossa sociedade de hoje em dia.
“A série é repleta de observações de hoje em dia. Muita coisa que a Maria Teresa e os outros personagens dizem, vivemos isso também agora. A primeira temporada acabou no Império e começou na Independência. Agora, na trama, acabou a República do Café com Leite e começou a Era Vargas. O que era a corrupção no Paço Imperial, a troca de favores na época, isso tudo continua atual no contexto de hoje”, comenta.
Em entrevista à TUdo, ela conta ainda mais detalhes da carreira e da série. E fala da contribuição da arte em debates importantes da sociedade. Sente-se e fique à vontade para conhecer mais sobre essa mulher incrível, com uma carreira brilhante e que tem uma contribuição fundamental para a arte em nosso país.
Revista Tudo: As pessoas já conhecem a Maria Teresa, sua personagem em “Filhos da Pátria”, mas como você se preparou para a segunda temporada?
Nós demos um pulo na história do Brasil, quem era escravo se tornou empregado doméstico, quem era corrupto continua corrupto, quem era o dono do dinheiro, continua sendo o dono do dinheiro, então nós vamos para década de 30, é hora do exército de Getúlio atravessar o nosso país. E a Maria Teresa, a questão dela no início é menos ascensão social e mais a loucura que ela fica com os militares, ela acha os militares lindos e fica sonhando com o Geraldo (Alexandre Nero), mas não como escriturário, e sim como um militar. Ela entra numa liga de donas de casas perfeitas que são mulheres dos militares e em seguida, entra na menopausa. Mas o que é legal dessa série é justamente isso, que o esqueleto da sociedade continua igual. Um exemplo: a relação dela com a Lucélia (Jéssica Ellen) que é a empregada, ela não consegue entender que uma pessoa precisa ter folga, e acha um absurdo. E como tudo no Brasil, essas relações se dão pelo afeto, então, ela fica magoada com a Lucélia ter folga, fica triste, ela tem uma relação longa com a empregada, mas uma hora ela a demite porque sente que a Lucélia a enfrenta e a Maria Tereza diz “Você está se demitindo? Eu é que te demito”. A série é permeada por essas relações e tem também o corrupto, Pacheco (Mateus Nachtergaele) e o Geraldo, é um casal maravilhoso porque ele parece uma tartaruga, é deprimido. Tem uma coisa que é muito brasileira, do pai amantíssimo, do pai de família, mas ao mesmo tempo tem noção da corrupção, é muito em cima do muro, porque ele não é totalmente corrupto, mas não deixa de ser, é um pai bem intencionado, mas um canalha. A série fala muito da sociedade brasileira, dessas nossas mazelas que nunca se resolveram, da escravidão. A minha personagem é uma loucura, ela diz frases racistas, mas ela se salva porque é uma débil mental, você tem carinho por causa disso, acaba desenvolvendo um sentimento afetuoso porque não é possível uma pessoa ser tão imbecil assim…
Você falou sobre as mazelas do Brasil desde o descobrimento, você acredita que um dia isso terá fim?
Eu não acho que esse dia irá chegar, mas são conquistas e retrocessos. Nós estamos vivendo um momento meio apocalíptico no mundo, eu não vejo muito um futuro em que tudo estará resolvido. Minha própria experiência, já que eu nasci na ditadura miliar, vivi a redemocratização, esse sonho de quando a democracia vier a sociedade será diferente, eu vivo numa sociedade mais aberta do que vivia quando criança. A crise econômica do Sarney, o fechamento do Brasil para o mundo, isso tudo melhorou, é um país mais incluído no mundo. Por outro lado, a democracia também nos provou que não há santos e que o problema é estrutural, o jogo político econômico do poder se organiza muito na nossa raiz. A questão da desigualdade social que nunca conseguimos resolver, a violência que aumentou por causa da desigualdade social, a educação que nunca foi resolvida, para isso tudo eu não vejo nenhum horizonte. Não temos saneamento básico em mais da metade do Brasil. Eu vivi 50 anos pra olhar e falar: é o mesmo assunto da minha infância.
Sua personagem Maria Teresa é muito presente nas redes sociais, você chegou a se inspirar em alguém ou algum personagem que você conheceu?
Não, a Maria Teresa desde a outra temporada está em todo mundo, está na rua e até em você mesma, eu não tenho uma pessoa na qual me inspirei, ela é um espírito que habita em vários lugares, inclusive em nós mesmas. A Maria Teresa parece com a sua tia, com a sua mãe, você tem amor por elas, mas elas são um monstro, isso é o melhor da Maria Teresa. Ela é a mesma personagem da primeira temporada, na verdade ela está pior porque agora o Bruno (Mazzeo) já escreveu com conhecimento. Essa temporada está mais dark justamente por isso, porque é uma série com a consciência dos personagens. O Geraldinho (Johnny Massaro) vira um fascista e fala na mesa “Não sei se eu disse a vocês, mas agora eu sou fascista”, e ele fala com orgulho e as pessoas questionam o que ele sabe sobre ser fascista e ele responde “Ué, como conseguir as coisas mais facilmente”… Essa é a definição de fascismo dele. A Catarina (Lara Tremouroux), por exemplo, está mais feminista do que era, uma mulher moderna, com consciência das loucuras do mundo, todos os personagens estão com tintas um pouco mais carregadas. Mas a Maria Teresa não vive em cima de um pedestal, pelo contrário, ela é da esquina, da rua. É interessante porque hoje eu vi uma matéria e nós estamos vivendo num mundo mais polemizado, antigamente era feio ser de direita, e hoje a pessoa tem orgulho em dizer o que pensa do mundo, ou seja, todo mundo falando mais claramente o que acha do mundo.
A série trata de assuntos atuais apesar da década, mas de maneira leve e engraçada, você gosta desse tom da comédia para falar sobre esses assuntos tão sérios?
Hoje nós filmamos uma cena que você para e pensa: “Caramba, será que tem graça?” porque tem o humor que no fim você diz “Que coisa horrível”. Várias coisas na Maria Teresa são assim. Hoje fazendo caridade no morro que é a favela começando na década de 30, já começou antes, mas que tem esse movimento de estabilidade, com mulheres que fazem caridade no morro, as donas de casa perfeitas, mulheres de militares e a Maria Teresa vem dizendo: “Que lugar exótico, tão diferente do Brasil”. Ela diz isso porque ela mora na Barra da Tijuca, acha que o Brasil é a casa dela. Eu quero ver como irão montar tudo isso, porque o Bruno e a galera são do humor, e esse assunto é muito atual e está acontecendo. O Felipe (Joffily, Direção artística), por exemplo, que veio do “Tá no Ar”, fez uma propaganda do “Branco no Brasil” que eu sinto que tem um parentesco com isso, você ri, mas se reconhece nesse horror.
Quando você dá vida ao personagem seja ele no teatro ou na televisão que tem essa questão do humor presente, você consegue perceber ou não quando a piada funciona?
Pois é, na primeira funcionou porque ela tem tudo isso, tem a corrupção rolando, tem o dono do poder, nessa temporada tem a passagem da política do café com leite para Getúlio e a modernização, tem a entrada da rádio. Tem um episódio, por exemplo, que fazem greve de fome, é bem interessante e a Maria Teresa quer ganhar um rádio porque Getúlio está falando, ela ouve o anúncio e vai recuperar na rua o brilho e a alegria de outrora com o produto que ela mal consegue ouvir o que é. Ela insiste com o marido e ganha o rádio. Enquanto isso tem uma história de greve num porto e o Geraldo é encaminhado para abafar o caso, ele acaba não abafando e rola uma pancadaria no meio do porto e no fim do programa a Maria Teresa vira e fala assim: “Não teve greve nenhuma, o rádio disse que não teve”, é triste. Eu só tenho piada com a rádio, no fim quando você entende o que é aquele rádio, e o programa tem muito disso, você vai rindo, rindo, mas chega uma hora que dá um nó na garganta. Chega uma hora, no meio da cena, que ela levanta e diz: “Vamos cantar o hino nacional em homenagem a esse Brasil que o rádio disse que é maravilhoso”, a série é muito pensada para isso.
A série foi lançada num momento político já conturbado, mas diferente do atual momento…
Mas sempre se colocando num momento político. Na temporada anterior havia situações, nós elegemos um presidente, muitas forças queriam isso, ou por alguma razão, eu não acho que a série crie nenhuma polêmica.
“Filhos da Pátria” é uma série que muda a cara da emissora, o que você acha desse novo caminho que a Rede Globo tem trilhado?
Eu acho que não é da Rede Globo, mas da sociedade, a internet mudou tudo. Você vê que na época da ditadura era um humor mais politizado, depois a sociedade viveu outras situações e o humor mudou. A TV Pirata era um humor mais de comportamento, a política voltou pra mesa de jantar, é natural que o humor acompanhe a sociedade.
O mundo passou por algumas transformações, mas o que você diria para a Fernanda de anos atrás como é sobreviver nessa sociedade machista?
Nós tivemos algumas mudanças significativas sim, sem dúvida o feminicídio está lá em cima, mas mudou sim, das relações dos anos 70 e 80, mudou. Quando eu comecei a trabalhar, estreei com “Inocência” (1983) era uma aberração porque era um filme que não tinha sexo e foi uma surpresa absoluta porque o que sustentava o mercado de cinema, o forte da indústria brasileira era a pornochanchada. Fora os filmes incríveis que nós fizemos – “Memórias de Cárcere” (1984), “Bye, Bye Brasil” (1980), filmes extraordinários, mas tinham essa pegada, tinha uma obrigação de ter uma cena nua. As relações pessoais melhoraram, a minha com os meus filhos, por exemplo, é diferente. Claro que tem o viés machista, tanto que nunca se matou tantas mulheres. Vai ver até por isso, ou talvez nunca soubemos, mas há uma consciência de mudança. Eu não falaria nada pra Fernanda mais jovem.