A escuta é o princípio da paz

Havia dia, mês e cenários previamente definidos. Professores, estudantes e famílias angustiadas. O lugar que poderia ou deveria ser o esteio, passou a ser o alvo. Sim, a Escola, a nossa Escola, a minha, a sua, todas elas!  Alguns optaram por se afastar, outros resolveram montar guarda armada em frente a ela e ainda tiveram outros que chegaram a ensaiar como iriam proceder em caso de ataque.

Era uma véspera de feriado. Cheguei para trabalhar, muitas crianças haviam faltado e o clima era estranho, algo suspenso no ar. Eu tinha um véu nos olhos. Algo encobria minha visão, mas, por incrível que pareça, eu nunca senti uma paz tão grande no momento em que adentrei e pisei firme naquele lugar tão querido, onde tenho respirado minhas tardes já por longos e bem vividos anos. As vozes nos corredores, o barulho das crianças, estava tudo normal, porém, mais quieto, reservado. Os ventos sopravam brandamente como que fizessem uma pausa e cruzavam nosso caminhar como se quisessem transmitir uma mensagem de renovação, de fresquidão, de calma.

Passou, acalmou. Os dias seguiram e uma força foi crescendo, uma coragem, parece que fomos tomados por uma certeza de que tudo ia ficar bem.

A escola tem sido machucada, foi assim na pandemia com os portões fechados e a poeira sobre as carteiras; depois, com ameaças e terror. Mas, eu insisto em afirmar que é nela que reside a chance de estar e reconhecer o outro, é nela que nasce ou deveria fazer nascer a vontade de crescer, de descobrir, de se encontrar.

É com o coração cheio de esperança e paixão que eu digo que ela deve ser protegida, querida, revisitada. E depois desse sentimento de tamanha vulnerabilidade, ela se reergue e, enquanto escrevo isso, nesse exato momento, posso apreciar as azaleias do lado de fora da janela da sala dos professores balançarem ao vento. É tão belo, tão único estar aqui, podem acreditar, não sabemos viver outra vida. Sinto que essa ferida, que deixou e ainda deixa marcas tão profundas em tantas vidas aqui em nosso país – e principalmente fora dele – produziu cicatrizes que nos fazem lembrar da importância de renovarmos os olhares para nossos meninos e meninas, reparar, olhar com ternura e à luz da missão que temos enquanto educadores, pois isso, pode valer uma vida; alguém que vai se abrir, que vai chorar no seu ombro, que vai sorrir ou que vai apenas calar-se envolto no seu abraço.

Difícil em meio ao dia a dia tão impetuoso encontrar esse lugar dentro da gente que clama pela vida e pela esperança, mas eu digo que agora parece que não temos mais opção a não ser procurá-lo com muita garra, pois cada um de nós pode e certamente faz a diferença nessa dança. O nosso movimento se traduz em uma onda gigante de amor capaz de, a cada despertar, trazer um outro significado para a vida das nossas crianças e adolescentes. Eu tenho o prazer de colecionar ao longo da minha vida tantas histórias, vidas que tanto me afetaram, me transformaram … e tudo aconteceu dentro da Escola.

E pra você? Que lugar é esse?

De escuta? De acolhimento?

Ou é um lugar pesado, feito só de cobranças, de preconceito?

Dependendo dessa resposta será preciso refletir, rever valores, abrir um diálogo, entender esse movimento.

A convivência traz conflitos sim, mas é aí que está o nosso impasse. É preciso haver um contorno justo, assertivo, “um olhar de quem realmente quer olhar”, como diz um educador tão querido com o qual tenho o privilégio de conviver, escutar de fato. Muitas vezes será preciso pausar para absorver essa intencionalidade. Na verdade, a escuta é um princípio de paz, e é ela que devemos almejar. É possível, assisto a isso todos os dias, olhando nos olhos de educadores apaixonados e observando interações carregadas de sentido em meio aos corredores que abrigam vidas em movimento e que pulsam e clamam por se revelarem.

Na escola tem sido assim, e o convite é que em todas as esferas por onde passam nossos meninos e meninas, também seja. Não há uma fórmula ou tutorial, apenas um dia de cada vez se apresentando com seus ímpetos e nossas mãos, ouvidos e olhares a cuidar, ver, rever, conduzir e até exortar!

Eu desejo que cada um encontre essa centelha dentro de si e que encontre pelo caminho quem possa ser atingido por ela.

E, voltando ao véu que encobria meus olhos lá no início, o mesmo foi retirado em uma mesa de cirurgia, mas também foi incrível e, simbolicamente, dissipado da minha alma e substituído por uma nova lente, mais límpida e pronta para enxergar de fato!

E, como diz Gonzaguinha, eu insisto: “é bonita, é bonita e é bonita…”

Deixo esse pensamento do querido Paulo Freire para nos inspirar:

“A educação é um ato de amor e coragem!”

Dedico esse texto à professora Elisabete Tenreiro, que nos deixou aos 71 anos no dia 27 de março após ser atacada em sua escola.

Adriana Rodrigues Xavier
Educadora
[email protected]

Mais notícias

Você viu tudo

Não há posts

Abrir Chat
Precisa de Ajuda?
Como podemos ajudar?