Por Ester Jacopetti
Maria Flor manda o papo sobre casamento, monogamia, machismo e sobre a experiência de ser mulher nos dias de hoje
Natural de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, Maria Flor, 41, sabe exatamente o que quer de sua vida como mulher. E essa construção vem acontecendo ao longo de experiências da vida pessoal e artística, que não poucas.Estreou na televisão com uma participação em ‘Malhação’, em 2003, e desde então acumula participações em produções da Globo, além de se dedicar ao cinema. Esteve em novelas como ‘Cabloca’, ‘Belíssima’ e ‘Sete Vidas’, e atuou no longa ‘360’, de Fernando Meirelles. Também foi protagonista da série ‘Aline’ e integrou o elenco da série ‘3%’, da Netflix. Em fevereiro de 2022, a atriz deu à luz seu primeiro filho, Vicente, com o escritor e psicoterapeuta Emanuel Aragão, que já é pai do Martin, de 11 anos, com quem Maria Flor tem uma ótima relação. A atriz está no ar em “Garota do Momento” como a dona de casa Anita. Na trama, que se passa nos anos 50, é casada com o autoritário Nelson (Felipe Abib) e mãe de dois rapazes.“Tenho esperança que os “Nelsons” por aí, por esse Brasil, também possam se questionar assistindo às cenas da novela e quem sabe repensar suas formas de agir”, desabafa.

Anita é casada com um homem machista e autoritário, mas, ela se revela uma mulher alegre e otimista longe dele. Embora a história se passe nos anos 50, você acredita que mulheres com essa dualidade ainda existam na sociedade atual? Como essa representação pode ressoar com as experiências contemporâneas das mulheres?
Acredito que existe sim e muito. Vivemos em uma sociedade onde, infelizmente, muitos homens ainda acreditam que detém mais poder e importância do que as mulheres. Seja por conta do trabalho e do dinheiro que colocam em casa, seja por uma convicção que tem apoio da sociedade machista e patriarcal em que vivemos. É exatamente por isso que muitas mulheres brasileiras ainda vivem abusos e opressões vindas dos parceiros.As mulheres não conseguem ter a sua individualidade e seus direitos respeitados, não podem ser livres e, ao mesmo tempo, casadas e com uma família constituída. Como o fato de ser casada e mãe tirasse dela o direito de ser indivíduo. É uma construção social que está enraizada na sociedade brasileira, a ideia de que o homem pode tudo e a mulher tem que pedir licença para ser, pensar, amar e desejar livremente. Precisamos então pensar em estratégias para desconstruir esse tipo de relacionamento e descobrir novas formas de se relacionar em um casamento. Acredito que a novela contando a história da Anita para tantas pessoas, com o alcance que uma novela tem, é um passo importante para essa reflexão e para que mais mulheres consigam acreditar em si mesmas e que são merecedoras da alegria, da vida, da diversão e criatividade que não podem ser abafadas pelos maridos. Ao mesmo tempo, tenho esperança que os “Nelsons” por aí, por esse Brasil,também possam se questionar assistindo às cenas da novela e quem sabe repensar suas formas de agir.
“As mulheres não conseguem ter a sua individualidade e seus direitos respeitados, nãopodem ser livres e, ao mesmo tempo, casadas e com uma família constituída”
Em ‘Aline’, em 2008, você interpretou uma jovem que vivia um relacionamento não monogâmico. Considerando as transformações sociais e culturais que ocorreram desde então, como você vê a representação da não monogamia na sociedade atual? De que forma essa liberdade de se relacionar com várias pessoas pode ser entendida como um ato de empoderamento feminino?
Os homens sempre tiveram o direito de se relacionar com muitas mulheres,isso sempre foi permitido a eles e até incentivado pela sociedade como sinal de virilidade e poder. Vemos isso na novela também. O Nelson se relaciona com outras mulheres. Os homens ainda acreditam que são diferentes e precisam de mais sexo ou precisam se sentir mais desejados… enfim. Não é uma realidade distante. No caso da Aline existia uma modernidade no programa e no quadrinho porque era uma mulher com o direito de se relacionar livremente com dois homens, e repare bem, eles estavam cientes disso e não se incomodavam, eram amigos e parceiros. Aline era a detentora do poder no triângulo amoroso. Ela ditava as regras. Isso foi muito moderno na época. Hoje em dia existe uma liberdade em se relacionar sem tantos enquadramentos e rótulos. Pode ser apenas sexo,podemos gostar de duas pessoas e essas pessoas podem saber e compreender isso,podemos namorar duas ou três pessoas ao mesmo tempo e todo mundo estar ciente disso.Os relacionamentos podem ser abertos e, ainda assim, existir uma cumplicidade e um casamento estruturado. Acho que a sociedade se abriu um pouco para as variadas formas de se relacionar. Não existem regras em como as pessoas devem amar ou viver suas vidas.Mas somos uma sociedade que, majoritariamente, ainda vive com a ideia da monogamia como a alternativa mais praticada. Eu, por exemplo, sou monogâmica. Claro,que as pessoas nem sempre são na prática e na realidade da vida,mas como discurso ela ainda é a conduta mais utilizada. Porque não queremos sofrer, queremos segurança e abrir a relação, se permitir dialogar sobre a possibilidade de ter outros parceiros, ter uma vida sexual e afetiva mais aberta é uma instabilidade que se for encarada vai trazer questionamentos e incertezas profundas. Não sei se isso tem a ver com empoderamento feminino exatamente, mas claro que, de certa forma sim, uma vez que as mulheres estão tendo a possibilidade de se colocar mais ativamente na dinâmica amorosa. O que eu acredito é que se for real a possibilidade do diálogo sobre as maneiras de se relacionar,todo mundo sai ganhando.
Maria, ao longo de sua carreira como atriz, roteirista, diretora e escritora, você tem explorado diversas formas de expressão artística, desde muito jovem. Como suas experiências no cinema, teatro e televisão influenciaram a escrita do seu livro ‘Já Não Me Sinto Só’, e que mensagem você espera transmitir aos leitores sobre a complexidade das relações humanas?
Nossa, que pergunta difícil. Eu acho que sempre que faço um trabalho, tento pensar sobre a complexidade humana. Sobre a maneira com a qual vivemos, sobre a forma que nos relacionamos e pensamos a vida. O livro ‘Já não me sinto só’ não é diferente, mas, ao mesmo tempo, talvez seja o mais íntimo dos meus trabalhos, no sentido de ser literatura. O que está lá é o meu sentimento em relação ao amor, aos relacionamentos e a vida. Claro,que é um tanto romântico e ingênuo de certa forma, porque escrevi sobre uma mulher mais jovem e mais inexperiente. O livro tem muitas coisas minhas e muitas sensações e lembranças que vieram de trabalhos que fiz e coisas que vivi. Ele é muito íntimo mesmo. Em seus vídeos com Emanuel, vocês abordam diversos temas, entres eles, a desigualdade de gênero e as dificuldades enfrentadas pelos casais na construção de uma relação mais igualitária.
Como você acredita que a comunicação aberta e a reflexão sobre essas questões podem ajudar os casais a desafiar as estruturas patriarcais em suas vidas diárias?
Eu acho que o diálogo é tudo que temos. A capacidade de se ouvir, pensar no que o outro está dizendo, elaborar, mudar de opinião ou não, falar, tentar se expressar, tentar expressa o que sentimos. Nada é mais poderoso do que isso. E para mim é isso que falta na sociedade como um todo, no mundo, nas relações. Eu e Emanuel adoramos conversar. Quando a gente não está bem, a relação está chata, confusa, sabemos que é porque não estamos nos ouvindo, não estamos conversando. Paramos e fizemos isso. O Emanuel é psicanalista e parte importante da nossa relação é falar. Acho que por isso estamos aqui até hoje.
“Os homens sempre tiveram o direito de se relacionar com muitas mulheres, isso sempre foi permitido a eles e até incentivado pela sociedade como sinal de virilidade e poder”
Recentemente, vocês lançaram o projeto ‘sommelier do Tinder’. Como surgiu essa ideia e quais desafios e aprendizados essa experiência trouxe para vocês até agora? Além disso,como vocês veem a influência desse projeto na dinâmica dos relacionamentos na era digital?
Esse projeto não vingou, na verdade. Eu lancei essa ideia em um vídeo, mas a coisa não funcionou exatamente. Como enviar o perfil, como a pessoa autorizaria essa exposição…enfim. Fizemos um Tinder para ver os perfis, mas não podíamos pegar um aleatoriamente e fazer o quadro. A logística da coisa ainda não funcionou, mas estamos tentando entender como fazer para resolver e dar continuidade a ideia.
Há um tempo eu vi a peça ‘Querido Mundo’, e o personagem de Miguel Falabella diz: ‘Casamento é igual submarino, até boia, mas foi feito para afundar’. Considerando essa metáfora, como você vê a evolução da percepção sobre o casamento e os relacionamentos ao longo do tempo? Acredita que essa visão ainda se aplica às relações contemporâneas, especialmente em um mundo onde as dinâmicas amorosas estão mudando?
Eu acho que aquele casamento tradicional, com a mulher subordinada ao marido, sendo responsável pela criação dos filhos e, por isso, presa pela dinâmica da casa e a demandadas crianças, e o homem sendo o provedor financeiro e, por isso, livre para viver e experimentar a vida sendo ausente em casa e na criação dos filhos, é um acordo que não tinha como dar certo. Nós, mulheres, somos seres desejantes e pensantes, tanto quanto os homens, portanto, é impossível prender a mulher pela maternidade completamente. Então, outros arranjos passaram a ser criados, apesar de muitas mulheres viverem no acerto tradicional ainda, com o acréscimo de proverem também financeiramente. Mas acho que estamos revendo o casamento, sim, cada vez mais os acordos têm sido refeitos e a cho que as pessoas encontram suas formas de manter o casamento, mas muitas vezes abrindo mão de serem felizes. Muitas mulheres compartilham a habilidade de ouvir e considerar argumentos que fazem sentido.
Na sua perspectiva, até que ponto essa capacidade de mudar de ideia é fundamental para o sucesso, não apenas no âmbito profissional, mas também na vida pessoal das mulheres?
Eu acho que mudar de ideia é essencial. Precisamos mudar o tempo todo, senão como amadurecer, como revisar a vida? A última vez que mudei de ideia foi em relação ao que fazer no aniversário do Vicente. Eu e Emanuel conversamos e decidimos fazer algo menor. Foi bom.
Como é a sua experiência de estar casada com um psicoterapeuta? Você percebe que as habilidades e abordagens que ele utiliza na terapia influenciam a dinâmica do relacionamento de vocês, e de que forma isso impacta a maneira como vocês se comunicam e lidam com os desafios do dia a dia?
Não, a clínica não tem nada a ver com o casamento. O que eu acho é que construímos uma capacidade de falar francamente sobre assuntos muitas vezes espinhosos.
E para finalizar,uma pergunta simples: quais são seus projetos para 2025?
Acabar a novela, viajar, ficar com meu filho e com a minha família. Namorar meu marido.Viver e tentar aproveitar o tempo.
“Nós, mulheres, somos seres desejantes e pensantes, tanto quanto os homens, portanto, é impossível prender a mulher pela maternidade completamente”



